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A violência como cotidiano de uma cidade


Novas exibições do documentário “Nossos Mortos Têm Voz” para alunos da escola municipal José de Alencar e professores da rede pública de ensino em Queimados reacendem debates sobre violência.

Mais duas exibições do documentário “Nossos Mortos Têm Voz”, que retrata a luta de mães e mulheres da Baixada Fluminense em busca de justiça para seus filhos e familiares assassinados por agentes públicos de segurança, fizeram emergir mais histórias reais, além das retratadas no filme, de pessoas com histórico de violência atravessadas em suas vidas. Produzido pela Quiprocó Filmes e apresentado por Fórum Grita Baixada e Centro de Direitos Humanos da Diocese de Nova Iguaçu, com o apoio de Misereor e Fundo Brasil de Direitos Humanos, o filme cumpriu o ciclo de 5 exibições e debates com os diretores Fernando Sousa e Gabriel Barbosa, as representantes da Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência de Estado na Baixada, além do professor de sociologia José Claudio Souza Alves, autor do livro “Dos Barões ao Extermínio: uma história da violência na Baixada”, que inspirou a criação do documentário. O palco de 4 dos 5 eventos foi o Teatro Metodista, próximo ao Centro de Queimados, sendo o outro realizado no cinema do Top Shopping em Nova Iguaçu. Todas as exibições foram consolidadas mediante o projeto “Quem ama a sua história, preserva sua memória”, uma parceria entre a Secretaria Municipal de Educação de Queimados e o Fórum Grita Baixada, articulada no âmbito do núcleo do FGB Queimados.   

Assim como na última matéria (inserir link) resolvemos ouvir mais relatos de espectadores que se sensibilizaram ou se indignaram com o que viram no filme. Na exibição ocorrida em 26 de junho, para alunos da Escola Municipal José de Alencar, professores e professoras fizeram questão de relatar o testemunho de alunos que vivenciaram episódios de assassinatos, numa contabilidade mórbida que só reforça o que dizem as estatísticas: jovens negros e pobres são o alvo preferencial para se transformarem em óbito. Uma delas foi Angélica Resende, há 24 anos trabalhando com língua portuguesa na educação pública queimadense. Seu tio, Mário Ferreira Moreira, sofrera um atentando, sendo alvejado com 9 tiros, vindo a falecer, num evento traumático ocorrido quando tinha 14 anos. “Até hoje não sabe o que aconteceu. Tentaram acusá-lo de várias coisas, e até de possuir relações com o tráfico. Mas a hipótese mais provável, embora nunca provada, foi a de que ele estava saindo com a ex-mulher de um policial e que o crime teria sido por ciúmes”, explica Angélica. O local do crime foi a mesma Praça dos Eucaliptos onde, no começo de outubro do ano passado, três pessoas foram mortas numa chacina também até hoje não completamente esclarecida.

Na exibição ocorrida em 4 de julho, especialmente para professores e coordenadores pedagógicos, o pesar da narrativa de “Nossos Mortos Têm Voz” se somou à notícia de mais uma chacina ocorrida em Queimados, dessa vez na comunidade de São Simão. Sete pessoas teriam sido assassinadas, cinco da própria localidade e duas do Morro da Torre. A cidade ainda tentava se recuperar do susto de alcançar, dias antes, o posto de “cidade mais violenta do Brasil”.

O dado é do Atlas da Violência 2018, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado mês passado. De acordo com o estudo, o município tem taxa de 134,9 mortes violentas para cada 100.000 habitantes. A pesquisa considera mortes violentas a soma de agressões, intervenções legais e mortes violentas com causa indeterminada, tomando como referência o município de residência da vítima. Além do que é noticiado pela mídia empresarial, muitas informações acerca dos círculos de violência existentes no município, ainda carecem da devida publicização. É o caso do ocorrido em um condomínio no bairro Valdoriosa, periferia de Queimados que, segundo um dos professores presentes, somaria mais de 20 desaparecidos nos últimos anos.   

Pequenas discussões, entre os professores, sobre a indústria da morte que se abate sobre a Baixada Fluminense incluíam o racismo. De como esse pressuposto poderia ser um agente potencializador para tantos assassinatos. A representante da Secretaria Municipal de Educação de Queimados, Rosângela Loredo, afirmou que, após estimular professores e professoras da rede pública da região a adotar medidas socioeducativas, que incluíam a implementação de literatura com personagens negros em histórias infantis, percebeu o quanto a sua percepção de racismo não correspondia a uma conjuntura mais pormenorizada. “Eu não tinha ideia desse olhar invisibilizante que o racismo recai sobre a criança negra, mas através de nossas ações estamos conseguindo recuperar a autoestima dos nossos alunos”, disse Rosângela.  

De acordo com a lei 10639/03, alterada pela lei 11.645/08, os currículos da educação básica pública devem contemplar a história e a cultura dos povos africanos e afro-brasileiros. Entretanto, poucas escolas estruturam seu currículo escolar, considerando a contribuição da população negra para a sociedade. Desde a educação infantil, os alunos ficam imersos em uma cultura discriminatória, que ignora o direito das crianças negras e desvaloriza sua identidade.

Embora as exibições no Teatro Metodista tenham encerrado um ciclo, o circuito de exibições do documentário “Nossos Mortos Têm Voz” segue adiante em outras regiões de Queimados e da Baixada Fluminense. A próxima exibição está agendada. Será na Escola Municipal Roquette Pinto, também em Queimados, no dia 9 de agosto. Atualizaremos novas datas em breve.

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