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Documentário Nossos Mortos Têm Voz é lançado em Nova Iguaçu


Documentário Nossos Mortos Têm Voz é lançado em Nova Iguaçu 
Estreia aconteceu no SESC. Cerca de 200 pessoas vindas de várias partes da Baixada Fluminense, prestigiam filme.  

fotos: Daniel Nonato 

Apenas 24 horas separavam a exibição do documentário Nossos Mortos Têm Voz para duas escolas, no Kinoplex Top Shopping Nova Iguaçu e a grande estreia ocorrida na noite da última quinta-feira (24/05) na unidade do Sesc no mesmo município. Se na primeira exibição, 150 jovens da rede pública de ensino das cidades de Nova Iguaçu e Queimados partilharam suas angústias e percepções sobre o documentário, na segunda, cerca de 200 pessoas de diversas partes da Baixada Fluminense compareceram em peso para prestigiar o filme produzido pelos diretores Fernando Sousa e Gabriel Barbosa, da produtora Quiprocó Filmes, e realizado a partir de parceria entre Centro de Direitos Humanos da Diocese de Nova Iguaçu, Fórum Grita Baixada e Misereor que aborda o depoimento e a luta por justiça de mães e familiares que tiveram entes assassinados pelas forças de segurança  de Estado na Baixada Fluminense.

Aos poucos, as pessoas foram ocupando o saguão do teatro também transformado em cinema. Uma das primeiras a chegar foi a psicóloga Vanúsia Amaral, do núcleo Lagoinha do Fórum Grita Baixada, e que veio acompanhada de um grupo de colegas de profissão. Perguntada sobre a importância do filme, ela disse que a película é um estímulo a reflexão. “O filme expõe uma violência desmedida. Gostaríamos de exibi-lo para as mães dos bombeiros mirins de um projeto social que atua em Lagoinha, além dos alunos do Ciep local. Não podemos perder essa oportunidade de debater o porquê de tanto ódio aqui em nossa Baixada”, diz Vanúsia.

Aparecida Alves é professora, além de pertencenter a Pastoral da Educação da Diocese de Nova Iguaçu. Ela tece suas expectativas sobre o documentário.“Eu acho que essa diversidade de pessoas que está aqui é uma prova de que é um tema urgente e que precisa ser discutido. É uma oportunidade para que todos nós não deixemos que essa violência nos silencie, precisamos de mais espaços e debater isso publicamente”, afirma Aparecida. 

Douglas Almeida, representante da Casa Fluminense, diz que “é importante o lançamento ser na Baixada Fluminense”. “Essa narrativa ganha peso porque mostra que essas mães precisam ter o direito à memória, à justiça e a reparação. É a transformação do luto em luta”, diz Almeida.

Uma das mães entrevistadas pelo Fórum Grita Baixada é Nivea Raposo. É através de seu depoimento, um dos mais sensíveis do filme, que muitos não conseguem segurar as lágrimas e se solidarizam com a dor da perda de um filho que, assediado pela milícia, primeiro se recusa a trabalhar para a mesma e logo depois é morto a tiros. Perguntada sobre que contribuição o filme poderia resultar, segundo suas expectativas, ela espera que “as pessoas possam se aliar mais às nossas causas, que ganhe bastante visibilidade e que esse cine debate possa fazer com as pessoas da Baixada se interessem mais pelo tema”.

O ensejo também é propício para que ela comente sobre o quão impactante é seu depoimento no filme e como as pessoas têm reagido após a exibição. “Infelizmente eu entrei nessa briga, mas eu tento participar de um monte de coisas para ocupar a minha cabeça. Eu adentrei a luta pelos Direitos Humanos por causa da morte do meu filho. Então, todo o dia eu tento desconstruir a morte dele dentro de mim”, se emociona Nívea.

Padre Marcio Rodrigues, coordenador do Centro de Direitos Humanos de Nova Iguaçu explica que o lançamento do filme vai representar a maior visibilidade da Rede de Mães e Familiares de Vítimas de Violência na Baixada: "Esperamos que o filme fortaleça a caminhada da Rede, dessa trajetória de mulheres que com muito esforço buscam somar forças para uma Baixada Fluminense sem violência"

Os diretores Fernando Sousa e Gabriel Barbosa explicam que "Nossos Mortos Têm Voz" busca traduzir para a linguagem cinematográfica o grito das mães e familiares vítimas da violência de Estado na Baixada Fluminense, que lutam pela memória e justiça dos seus filhos e familiares: “Queremos provocar inquietação nos agentes do Estado e nas suas instituições, mas sobretudo desejamos que o filme potencialize todo o trabalho e militância das mães e familiares massacrados pelo Estado. 'Nossos Mortos têm Voz' é um grito que expressa a dor das mães ao mesmo tempo em que as coloca como protagonistas na luta pelo direito à vida nas favelas e periferias do Brasil", contam.

Jayme Soares, do Conselho de Segurança Pública e Direitos Humanos da cidade de Nova Iguaçu, disse que o filme é essencial para o debate público. “Acho que com o filme, aos poucos vamos abandonar essa imagem de que naturalizamos a violência, de que é normal morrer em circunstâncias violentas. Quanto mais pessoas discutirem essa questão, mais benefícios teremos.”, diz Soares.

Após a exibição do filme, o cine debate não foi menos acalorado. Luciene Silva, também uma das entrevistadas no documentário, se juntou a Nívea Raposo, igualmente integrante da Rede de Mães Vítimas da Violência da Baixada. A elas se somaram um dos diretores do filme, Fernando Sousa, e o professor de sociologia José Claudio Souza Alves, autor do livro “Dos Barões ao Extermínio, uma história de violência na Baixada Fluminense”, uma das obras que serviu de base para a feitura do documentário. A mediação da conversa ficou a cargo do coordenador do Fórum Grita Baixada, Adriano de Araújo. que, desde a pré-estreia, ocorrida no Cine Odeon em março, observa-se que o filme tem provocado uma série de reflexões muito fortes sobre a trajetória de luta dessas mães, ao mesmo tempo que evidencia como o Estado continua matando, seja pelos assassinatos em si, mas também pela não responsabilização e reparação desses crimes bárbaros.

Luciene, já escolada em tantas falas de dor sobre a sua situação e das amigas-mães, tem a completa atenção da plateia. “Nós assistimos com muita tristeza o extermínio de nossa juventude. Nenhuma mãe cria seu filho pra ser jogado no caixão. Nós somos ao todo, 10 mães destruídas e dilaceradas. Não queremos mais mães nessa situação. Tudo isso só vai acabar quando ao população entender que nos dois lados dessa violência, não há vencedores. Porque quem puxa o gatilho, amanhã pode ser o alvejado também. Não é a toa que temos a polícia que mais mata e a que mais morre no mundo”, disse Luciene

Fernando Sousa disse se sentir muito honrado em dirigir o documentário e agradeceu à Rede de Mães da Baixada naquilo que considerou ser uma das trocas mais sagradas entre seres humanos, a confiança. “Tivemos de ser muito cuidadosos. Procuramos ser os mais conscientes possível em relação às palavras que elas usariam em suas falas, pois queríamos que elas dissessem as suas verdades, mas que isso não significasse que elas pudessem estar inseguras de forma nenhuma”.  E emendou logo em seguida: “Precisamos falar sobre Direitos Humanos, estamos diante de um país que mais mata defensores dos direitos humanos, ativistas, militantes, população LGBT, negros, mulheres e jovens do mundo”.

Encerrando o debate, o sociológo José Claudio Souza Alves aproveitou o conturbado momento político pelo qual o país atravessa e forneceu críticas sobre as escolhas que o eleitorado faz em relação a seus supostos representantes em cargos eletivos. Para ele, muitos políticos são diretamente responsáveis pelos índices de violência que assolam a Baixada Fluminense. “Nós elegemos personalidades políticas que são matadores, torturadores. Eles convivem com a gente, impõem medo nas comunidades porque além de matarem e desaparecerem com os corpos de centenas de pessoas todos os dias, prefeitos, vereadores e secretários têm vínculos com milicianos e lucram economicamente com o medo. Enquanto isso continuar acontecendo teremos mais mortes encomendadas pelo Estado, que alimenta esse sistema”, finalizou.

Sinopse
A narrativa do documentário é construída a partir do depoimento e do protagonismo das mães e familiares vítimas da violência de Estado da Baixada Fluminense. Tendo como ponto de partida esses casos, mas não se limitando à crueza da violência praticada, o documentário trabalha com as histórias atravessadas por essas perdas. Pretende-se resgatar a memória dessas vidas interrompidas trazendo uma visão crítica sobre a atuação do Estado através das polícias na Baixada Fluminense, sobretudo no que diz respeito à violência contra jovens negros.

Contexto histórico
Entre as décadas de 50 e 70, a Baixada Fluminense foi projetada nacionalmente pela atuação de esquadrões da morte. Nos anos 1980, a Baixada novamente ficaria marcada pela atuação de grupos de extermínio, ambos compostos por policiais e outros agentes do Estado. Ao longo desse período, matadores foram eleitos a cargos políticos e a influência dos grupos criminosos penetrou nas estruturas de poder legislativo, executivo e do judiciário.

A partir da década de 90 observa-se a expansão e a presença do tráfico varejista de drogas e a emergência das milícias, especialmente nos anos 2000 e 2010. As estruturas de poder político e de ganhos econômico-sócio-culturais calcadas na violência se consolidaram, modificaram e se reconfiguram permanentemente, sobretudo nas esferas do poder econômico e político.

Essa configuração faz com que as taxas de violência letal sejam umas das mais altas do país. Somente entre os anos 2006 e 2016, foram assassinadas 20.645 pessoas na Baixada Fluminense. Esse número representa 30% das mortes violentas do estado do Rio, com taxas anuais que superam 60 assassinatos por 100 mil habitantes. A letalidade policial soma a essa realidade números alarmantes, com 2216 casos registrados durante mesmo período, correspondendo a aproximadamente 12% das mortes violentas da Baixada.

Trilogia da memória
O documentário "Nossos Mortos Têm Voz" é o segundo filme da "Trilogia da Memória", da qual fazem parte os documentários "Nosso Sagrado" e "Entroncamentos". Enquanto dimensão incontornável da nossa humanidade, a memória não só nos define como também constrói nossa experiência social. A luta contra o esquecimento é a luta contra a morte, o fenecimento. Na "Trilogia da Memória", ela aparece como um instrumento de resistência contra o Estado que, de forma violenta, insiste em apagar as memórias de pessoas e lugares. Recontar a história a partir da narrativa não oficial é o passo fundamental para a transformação do presente e do futuro. A narrativa da memória é a arma com a qual buscamos continuar contando (para nós mesmos) quem somos. 





29-05-18
https://forumgritabaixada.org.br/estreia-em-nova-iguacu

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